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VIVER PARA CONTÁ-LA
(Fonte: O Dia, www.odia.ig.com.br,
Fernando Molica)
A Karla Rondon Prado
bateu um bolão, aqui neste retângulo, ao tratar dos dilemas e riscos que
envolvem a decisão de expor, na primeira página de um jornal, esta ou aquela
foto de uma tragédia. É duro editar, é duro cobrir, escrever. Entre os
profissionais e voluntários presentes num episódio como o de Santa Maria, nós,
jornalistas, somos, em tese, os mais dispensáveis. Não sabemos apagar incêndios
nem, muito menos, fazer procedimentos médicos que podem salvar vidas.
Nossa presença
incomoda, gera uma espécie de ruído em ambientes ocupados por uma dor sem
tamanho. Protegidos por nossos
bloquinhos, microfones ou câmeras, nós temos a tarefa de contar aquela
história; isso implica em perguntar, em fotografar. É quase obrigatório nos
aproximarmos, puxarmos alguma conversa com parentes de vítimas.
Por mais que sejamos
cascudos, é impossível não ficarmos comovidos diante daqueles pais, mães, avós,
namorados, amigos, vizinhos. Como agir, o que dizer, o que perguntar para os
pais de um rapaz de 19 anos que, na madrugada, velam o corpo do filho diante do
púlpito de uma igreja evangélica? Como prender o choro ao ouvir a mãe, dona de
casa, dizer que ela e o pai, pintor, nunca deixaram faltar nada àquele menino,
estudante de Ciências da Computação da Universidade Federal de Santa Maria?
Como não pensar nos nossos filhos, nos filhos dos nossos amigos? Como não ficar
tocado diante daqueles milhares de jovens que, vestidos de branco, cantam pelas
ruas a necessidade de amar como se não houvesse amanhã? Jovens que choravam o
amanhã abortado de seus colegas.
O amigo Oscar Valporto
me disse, na faculdade, que histórias precisam ser contadas: ele decidira ser
jornalista porque queria contá-las. A tragédia da boate não deveria ter
ocorrido, mas, como aconteceu, é preciso que seja contada, até para que não se
repita e para que os culpados sejam punidos. No mais, contamos histórias porque
somos humanos, precisamos compartilhar alegrias, dores, esperanças. Em Santa
Maria, conversei com a mãe de um rapaz que estava internado. Depois, agradeci e
pedi desculpas pelo incômodo. Para minha surpresa, ela então me agradeceu.
Disse que estava precisando conversar, falar do filho, contar sua história.
‘Viver para contar’ (‘Vivir para contarla’), como Gabriel García Márquez,
também jornalista, tão bem resumiu no título de seu livro de memórias.
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